Waly Salomão
Pan-cinema Permanente
"E chega desse papo furado de que o sonho acabou!
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
...
"
Waly Salomão
Repertório Poético do nosso STAND UP POETRY
" A Poesia da Palavra - aos homens do nosso tempo"
Pan-cinema Permanente
"E chega desse papo furado de que o sonho acabou!
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
A vida é sonho
...
"
Waly Salomão
Repertório Poético do nosso STAND UP POETRY
" A Poesia da Palavra - aos homens do nosso tempo"
Apanhador de Desperdícios, Manuel de Barros
“Uso a palavra para
compor os meus silêncios
Não gosto das palavras
fatigadas de informar
Dou mais respeito as
que vivem de barriga no chão
Tipo água pedra sapo
Entendo bem o sotaque
das águas
Dou mais respeito às
coisas desimportantes
E aos seres
desimportantes.
Prezo insetos mais que
aviões
Prezo a velocidade das
tartarugas
Mais que a dos mísseis
Tenho em mim um atraso
de nascença
Fui aparelhado para
gostar dos passarinhos
Tenho abundância de
ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do
que o mundo.
Sou um apanhador de
desperdícios
Amo os restos como as
boas moscas.
Queria que a minha voz
tivesse um formato de canto.
Por que eu não sou da
informática.
Eu sou da
invencionática.
Só uso a palavra para
compor os meus silêncios.”
Mar Adentro, Elisa Lucinda
“ É preciso chorar.
As lágrimas são a
chuva da gente,
Nuvens do nosso tempo
íntimo precisam desabar.
É preciso chorar,
lágrimas são os rios
do ser,
as cachoeiras da
gente,
mudam nosso tempo
simples,
atualizam o nosso mar.
É preciso chorar,
é preciso a natureza
copiar,
é preciso aliviar e
molhar a seca do coração.
Se não chover vira
sertão,
Morre homem,
morre gado,
morre plantação.”
O guardador de rebanhos, Alberto Caeiro
Canto XXXIX
“ O mistério das
coisas, onde está ele?
Onde está ele que não
aparece
Pelo menos a
mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e
que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais
do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para
as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que
soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido
oculto das coisas
É elas não terem
sentido oculto nenhum.
É mais estranho que
todas as estranhezas
E do que os sonhos de
todos os poetas
E o pensamento de
todos os filósofos,
Que as coisas sejam
realmente o que parecem ser
E não haja nada que
compreender.
Sim, eis o que os meus
sentidos aprenderam sozinhos:-
As coisas não tem
significação: têm existência.
As coisas são o único
sentido oculto das coisas.”
O Açúcar, Ferreira Gullar
“O branco açúcar que
adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por
mim
tampouco surgiu dentro
do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça,
água
na pele, flor
que se dissolve na
boca. Mas este açucar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
Da mercearia da
esquina e
tampouco o fez o
Oliveira
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de cana
de açúcar de Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o
dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais
extensos
que não nascem por
acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes,
onde não há hospital,
nem escola, homens que
não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram
este açúcar.
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café
esta manhã
em Ipanema"
Reza Forte, Elisa Lucinda
“ Deus salve as
belezas corajosas!
Elas esparramam na
atitude e
no seu jeito explícito
o seu Van Gogh.
Estilhaçam de
pinceladas a tela da vida,
pintam ousadas, como
um Dalí enlouquecido,
seu teor, seu clamor,
seu alarido.
Deus salve as belezas
corajosas
e proteja o coração de
seus vencidos.”
Se eu fosse um padre, Mário Quintana
“Se eu fosse um padre,
eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus
nem no pecado
- muito menos no Anjo
Rebelado
e os encantos de suas
seduções,
não citaria santos e
profetas:
nada de suas
celestiais promessas
ou das suas terríveis
maldições.
Se eu fosse um padre,
eu citaria os poetas,
rezaria seus versos,
os mais belos,
desses que desde a
infância me embalaram
e quem me dera que
alguns fossem meus!
Porque a poesia
purifica a alma.
...e um belo poema –
ainda que de Deus se aparte-
um belo poema sempre
leva a Deus.”
O livro dos abraços, A função da arte/2,
Eduardo Galeano
“ O Pastor Miguel Brun
me contou que há alguns anos esteve com os índios do Chaco paraguaio. Ele
formava parte de uma missão evangelizadora. Os missionários visitaram um
cacique, um gordo quieto e calado, escutou sem pestanejar a propaganda
religiosa que leram para ele na língua dos índios. Quando a leitura terminou,
os missionários ficaram esperando.
O
cacique levou um tempo. Depois, opinou:
-
Você coça.
E coça bastante, e coça muito bem.
E
sentenciou:
-
Mas onde
você coça não coça.
Poemas aos homens do nosso
tempo, Hilda Hilst
Canto VII
“Que
te devolvam a alma
Homem
do nosso tempo.
Pede
isso a Deus
Ou às
coisas que acreditas
À
terra, às águas, à noite
Desmedida,
Uiva
se quiseres,
Ao
teu próprio ventre
Se é
ele que comanda
A tua
vida não importa,
Pede
à mulher
Àquela
que foi noiva
À que
se fez amiga,
Abre
a tua boca, ulula
Pede
à chuva
Ruge
Como
se tivesses no peito
Uma
enorme ferida
Escancara
a tua boca
Regouga:
A ALMA. A ALMA DE VOLTA.”
Guardador de Rebanhos, Alberto Caeiro
Canto II
“O meu olhar é nítido
como um girassol.
Tenho o costume de
andar pelas estradas
Olhando para a direita
e para a esquerda,
E de vez em quando
olhando para trás...
E o que vejo a cada
momento
É aquilo que nunca
antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso
muito bem...
Sei ter o pasmo
essencial
Que tem uma criança
se, ao nascer,
Reparasse que nascera
deveras...
Sinto-me nascido a
cada momento
Para a eterna novidade
do mundo...
Creio no mundo como
num malmequer,
Porque o vejo. Mas não
penso nele
Porque pensar é não
compreender...
O mundo não se fez
para pensarmos nele
( Pensar é estar
doente dos olhos)
Mas para olharmos para
ele e estarmos de acordo.
Eu não tenho
filosofias: tenho sentidos...
Se falo na natureza
não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e
amo-a por isso,
Porque quem ama nunca
sabe o que ama
Nem sabe por que ama,
nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar”.
Aviso da Lua que Menstrua, Elisa Lucinda
“Moço, cuidado com
ela!
Há que se ter cautela
com essa gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira
às avessas:
cada ato que faz, o
corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva,
parece hera
cuidado com essa gente
que gera
essa gente que se
metamorfoseia
metade legível, metade
sereia.
barriga cresce,
explode humanidades
e ainda volta pro
lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí
é que está:
cada palavra dita,
antes de dizer, homem, reflita...
Sua boca maldita não
sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo
planeta panela.
Cuidado com cada letra
que manda!
Tá acostumada a viver
por dentro,
transforma fato em
elemento
a tudo refoga, ferve,
frita
ainda sangra tudo no
próximo mês.
Cuidado, moço, quando
cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Por que sou muito sua
amiga
é que eu tô te falando
“na vera”
conheço cada uma, além
de ser uma delas.
Você que saiu da
fresta dela
delicada força quando
voltar a ela.
Não vá sem ser
convidado
ou sem os devidos
cortejos...
Às vezes pela ponte de
um beijo
já se alcança a
“cidade secreta”
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias
metidas e mais se afasta dela
Cuidado moço, por você
ter uma cobra entre as pernas
cai na contradição de
ser displicente
diante da própria
serpente.
Ela é uma cobra de
avental.
Não despreze a
meditação doméstica.
É da poeira do
cotidiano
que a mulher extrai
filosofia
cozinhando costurando
e você chega com a mão
no bolso
julgando a arte do
almoço: Eca!...
Você que não sabe onde
está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em
rosnar, ladrar e latir
então esquece de saber
morder devagar
esquece de saber
curtir, dividir.
E aí quando quer
agredir
chama de vaca e
galinha
São duas dignas
vizinhas do mundo daqui!
O que é que você tem
pra falar de vaca?
O que você tem eu vou
dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De
leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende.
Enaltece, elogia:
comparando rainha com
rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que tá
agredindo
que tá falando
palavrão imundo.
Tá não, homem.
Tá citando o princípio
do mundo!”
Poemas aos Homens do Nosso Tempo, Hilda Hilst
Canto XIII
Ávidos de ter homens e
mulheres
Caminham pelas ruas.
As amigas sonâmbulas
Invadidas de um novo a
mais querer
Se debruçam banais,
sobre as vitrines curvas.
Uma pergunta brusca
Enquanto tu caminhas
pelas ruas. Te pergunto:
E a entranha?
De ti mesma, de um
poder que te foi dado
Alguma coisa clara se
fez? Ou porque tudo se perdeu
É que procuras nas
vitrines curvas, tu mesma.
Possuída em sonho, tu
mesma infinita, maga,
Tua aventura de ser,
tão esquecida?
Por que não tentas
esse poço de dentro
O incomensurável, um
passeio veemente pela vida?
Teu outro rosto.
Único. Primeiro. E encantada
De ter teu rosto
verdadeiro, desejarias nada.”
Cântico Negro, José Régio
“ Vem por aqui” –
dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os
braços, e seguros
De que seria bom que
eu os ouvisse
Quando me dizem: “ vem
por aqui!”.
Eu olho-os com olhos
lassos,
(Há, nos olhos meus,
ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar
ninguém.
_ Que eu vivo com o
mesmo sem-vontade
Com que rasguei o
ventre da minha mãe.
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios
passos...
Se ao que busco saber
nenhum de vós responde
Por que me repetis: “
vem por aqui!!”?
Prefiro escorregar nos
becos lamacentos,
Redemoinhar aos
ventos,
Como farrapos,
arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar
florestas virgens,
E desenhar meus
próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não
vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis
impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os
meus obstáculos?...
Corre, nas vossas
veias, sangue velho do avós,
E vós amais o que é
fácil!
Eu amo o Longe e a
Miragem
Amo os abismos, as
torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes
canteiros,
Tendes pátria, tendes
tetos,
E tendes regras, e
tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um
facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e
sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que
me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai,
todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio
nem acabo,
Nasci do amor que há
entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê
piedosas intensões,
Ninguém me peça
definições!
Ninguém me diga: “ vem
por aqui”!
A minha vida é um
vendaval que se soltou.
É uma onda que se
alevantou,
É um átomo a mais que
animou...
Não sei por onde vou,
Sei que não vou por
aí!”
“UMA CARTA DE CAIO
FERNANDO ABREU CONTA O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE MORANGOS MOFADOS
Escrever era algo
fundamental para Caio Fernando Abreu. Ele dizia que se expressava melhor “por
escrito”, por isso escreveu tantas e tão belas cartas. Aqui, selecionamos a que
enviou ao jornalista e grande amigo José Márcio Penido, em 1979, na qual relata
como criou este livro. Estimula o amigo a escrever, fala do processo de
criação, de sua admiração por Clarice Lispector e Dalton Trevisan, da entrega
que a literatura exige e dos personagens que ganham força e se libertam do
autor, decidindo eles mesmos o desenrolar da história. Como o personagem de Morangos
mofados.
Porto, 22 de dezembro de
1979
Zézim,
Cheguei hoje de tardezinha
da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tua
carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em
você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quieto e ouve, ou lê,
você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portanto, todo atento aos
pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei
por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a
decisão pseudo-inteligente.
Seguinte, das poucas
linhas da tua carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São,
portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução, concordo, não está na
temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais
fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente
destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim,
ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca
me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há
caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E
lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo):
“Caminante, no hay camino. Pero elcamino se hace ai
andar”.
Mais: já pensei, sim, se
Deus pifar. E pifará, pifará porque você diz “Deus é minha última esperança”.
Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo
essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança,
a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não
esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo
é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso.
Certo, eu li demais
zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a
magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Alian Watts, e D. T. Suzuki,
e isso freqüentemente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas,
acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade.
Você me pergunta: que que
eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tudo, acordando todo dia,
passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som,
alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme:
acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi
procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou
te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar
caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off
Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova
York, nem.
Você quer escrever. Certo,
mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que
escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas
nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te
cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a
peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier
de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você
poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria
esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que
tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo
escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe
fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, “apaga o cigarro no
peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo”. Isso é escrever. Tira
sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a “função social”, nem
nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo.
Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega?
Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo
que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio,
da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é
fundamental na minha vida.
Eu conheci razoavelmente
bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que
conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía,
porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo
nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente
falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de
“meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar.
Mergulhou na sua própria trap e foi inventando caminhos, na maior
solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como
Artaud. Ou Rimbaud.
É esse tipo de criador que
você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente,
é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com
salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na Cultura, com todo mundo
conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita
gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me
engano.
Zézim, remexa na memória,
na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios
mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada,
nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas
mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no
fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo,
não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem
prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente,
isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o
processo de gestação do sub ou do inconsciente.”
Poemas aos Homens do Nosso Tempo, Hilda Hilst
Canto VI
“ Tudo vive em mim.
Tudo se entranha
Na minha tumultuada
vida. E porisso
Não te enganas, homem,
meu irmão,
Quando dizes na noite,
que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti.
E a esses que passam
Nas manhãs, carregados
de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos
eles em mim,
Porque o poeta é irmão
do escondido das gentes
Descobre além da
aparência, é antes de tudo
LIVRE, e porisso
conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto,
não fala do palanque,
Não está no comício,
não deseja riqueza
Não barganha, sabe que
o ouro é sangue
Tem os olhos no
espírito do homem
No possível infinito.
Sabe de cada um
A própria fome. E por
que é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.”
Trechos do livro ‘Um sopro de Vida’, Clarice
Lispector
“Andei semeando por
aí.
Entre a palavra e o
pensamento existe o meu ser.
Meu pensamento é puro
ar impalpável, insaisissable.
Minha palavra é de
terra. Meu coração é vida.
Minha energia
eletrônica é mágica de ordem divina.
Meu símbolo é o amor.
Meu ódio é energia atômica.
Eu te recebo de pés
descalços: esta é a minha humildade e esta nudez de pés
É a minha ousadia.
Não quero ser somente
eu mesma. Quero também ser o que não sou.
Eu gosto um pouco de
mim porque sou adstringente. E emoliente. E sucupira. E vertiginosa. Estrugida.
Sem falar que sou bastante extrógina.
De agora em diante eu
quero mais do que entender: eu quero superentender, eu humildemente imploro que
esse dom me seja dado. Eu quero entender o próprio entendimento. Eu quero
atingir o mais íntimo segredo daquilo que existe. Estou em plena comunhão com o
mundo.
Quem sabe – quem sabe
se o que é certo está exatamente no erro? Se é verdade, quantos “erros”
frutíferos eu perdi. Isso contraria tudo o que aprendi e tudo o que a sociedade
humana me ensinou.
Não servir de nada é a
liberdade. Ter um sentido seria nos amesquinhar, nós somos gratuitamente apenas
pelo prazer de ser.
Eu sou como as
cigarras que explodem de tanto cantar. Quando é que explodirei? Que canto eu?
Canto o esplendor de se morrer? Canto o
meu amor que de tão vivo se estrebucha? Canto a feitiçaria no ar? Canto as
moléculas do ar?
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